quarta-feira, 17 de junho de 2015

Al-andaluz – O estado islâmico Ibérico


Introdução
Muito antes do recém-criado estado islâmico do século XXI, assente em bases duvidosas, houve na idade média outro estado islâmico, o original, que, nascido na península arábica se estendia por 3 continentes, do médio oriente à península Ibérica, passando pelo norte de África.  Com o tempo, este vasto império foi-se fragmentando política e religiosamente mas serviu de ponte entre diferentes culturas às quais transmitiu e absorveu conhecimentos em diversas áreas do saber que fariam com que germinasse na península ibérica uma civilização original.




Origens

 O Islão foi a última das grandes religiões monoteístas da história da humanidade a surgir. A sua certidão de nascimento data dos alvores do século VII, durante os últimos 22 anos de vida do profeta Maomé (610 – 632).
Maomé acreditava ter sido escolhido para transmitir à humanidade a palavra de Deus. Para os muçulmanos ele é o último (e mais importante) de uma linhagem de profetas dos quais fazem parte, entre outros, Abraão, Moisés e Jesus Cristo.
Após algumas dificuldades para se afirmar na península arábica, (que levaram a Maomé a fugir de Meca para Medina com os seus seguidores - a Hégira) o Islão consolida-se após a morte do profeta e sofre uma rápida expansão durante o período dos primeiros quatro califas – líderes sucessores. A sua doutrina, pela qual se rege o mundo islâmico encontra-se compilada no livro sagrado dos muçulmanos o corão ou al-corão.
Mais que religiosa, a expansão islâmica tinha um cariz bélico, até porque a jihad é um dos pilares não oficiais do islão.
Nasceu assim um novo império, sustentado na religião islâmica, também designado por califado omíada (nome derivado da dinastia governante, originária da tribo de Maomé), e que tinha sede em Damasco (actual Síria).
Durante o expansionismo, os muçulmanos chegaram ao norte de África, de onde passaram à península ibérica que rapidamente conquistaram após a decisiva vitória na batalha de Guadalete (711) onde enfrentaram uma monarquia visigótica decadente.
A partir daqui iniciou-se um longo conflito peninsular entre os cristãos autóctones e os muçulmanos invasores, a que se dá o nome de “reconquista”.
Anterior às cruzadas, esta relação belicista entre cristãos e muçulmanos era no entanto posterior a outra que já existia no médio oriente desde finais do século VII entre o império bizantino e os árabes (aos quais sucedem mais tarde os turcos seljúcidas e por fim os otomanos que conquistam Constantinopla).
Após a estrondosa vitória inicial junto às margens do rio Guadalete, duas derrotas pesadas contra os sobreviventes cristãos da península e contra os francos de além-Pirenéus marcam o fim das pretensões expansionistas islâmicas na Europa.  Destas batalhas, (Covadonga - 722  e Poitiers - 732) saíram mitificados os dois líderes vencedores: Pelágio por parte dos cristãos peninsulares e Carlos Martel por parte dos Francos - o pai da dinastia Carolíngia e avô de Carlos Magno.
A chegada dos muçulmanos à península provocou uma grande transformação na sociedade hispano-gótica existente. Os hispânicos do sul islamizaram-se progressivamente ou migraram para norte. Entretanto no norte crescia e solidificava-se a resistência cristã e no sul florescia a civilização do al-andaluz do qual a cidade de Córdova se tornou expoente máximo.



Ano
Batalha
Oponentes
Resultado
Figuras históricas
711
Guadalete
Visigodos vs. Muçulmanos   
Vitória muçulmana
Rei Rodrigo/Tarik
722
Covadonga
 Astúrias vs. Al-andaluz
Vitória cristã
Pelágio
732
Poitiers
Francos vs. Muçulmanos
Vitória dos Francos
Carlos Martel
791
Burbia
Reino das astúrias vs. Al-andaluz
Vitória muçulmana
Bermudo I/Hisham I
920
Valdejunquera
Emirado de Córdova vs. Reinos de Leão e Pamplona
Vitória Muçulmana
Abd-al-Rahman III/Ordonho II de Leão/Sancho Garcés I
939
Simancas
Califado omíada vs. Reino de Leão
Vitória cristã
Abd-al-Rahman III/Ramiro II




O nascimento do Al-andaluz

Após a rápida conquista muçulmana no período de 711-18, a península ibérica, quase na sua totalidade ficou transformada numa província do império omíada e passou a ser designada por Al-andaluz. Esta ficou dependente do califado omíada até à sua dissolução em 750. Nesta fase, a população muçulmana da península era composta por 3 grandes grupos étnicos que se juntaram à maioria nativa hispano-gótica de matriz cristã. Os árabes (a elite), que se instalaram nas zonas urbanas de onde conseguiam exercer as funções administrativas, os berberes, que se radicaram sobretudo nos meios rurais, e os sírios dos quais fazia parte a própria dinastia omíada. Estes grupos faziam parte das primeiras forças invasoras.  Entre 711 e 756, 21 governadores (wali) dotados de poderes militares, administrativos, judiciais e religiosos, (um pouco ao jeito dos duces visigodos) governaram a península em nome dos califas de Damasco.




O emirado

Fugido da chacina que depôs a sua família do trono de Damasco em detrimento da nova dinastia dos abássidas (que passaram a sediar-se em Bagdad), o omíada sobrevivente, Abd-al-Rahman, refugiou-se no al-andaluz, a província mais longínqua do califado, onde chegou em 755. Conseguiu unir um território dilacerado pelas lutas entre árabes e berberes e após conquistar Córdova, com o apoio dessas tribos proclamou-se emir em 756 e criou assim o emirado de Córdova. Em 773, Abd-al-Rahman I consegue a independência do novo estado em relação ao califado abássida. Contudo esta era uma independência de cariz político e administrativo, mas não religioso uma vez que Córdova e Bagdad mantinham a mesma unidade espiritual, o que atribuía aos Califas abássidas um estatudo hierárquico superior aos emires de Córdova.
De norte para sul, os emires criaram 3 regiões administrativas autónomas (“marcas”) dependentes do poder central de Córdova. A marca superior, com capital em Saragoça, a marca central, com sede em Toledo e a marca inferior com capital em Mérida.
Após os governos de Hisham I (788-796) e Al-Hakam I  (796-822), o emirado atinge o seu esplendor com o advento de Abd-al-Rahman II (822-852) que foi o verdadeiro dinamizador do estado islâmico peninsular nesta fase. Foi um escritor e poeta talentoso, fomentou as artes, as ciências e a agricultura, dotou a capital de águas, banhos públicos, escolas e excelentes vias, embelezando-a com formosos monumentos.



O califado de Córdova
 
Um trineto de Abd-al-Rahman II, Abd-al-Rahman III, foi simultaneamente o último emir (912-929) e o primeiro califa do Al-andaluz (929-961). É considerado o príncipe mais bem sucedido da dinastia omíada, conseguindo tornar um estado tão heterogéneo como o califado de Córdova num dos estados mais poderosos e evoluídos da Europa. A sagacidade, cultura e diplomacia do califa fizeram com que prosperidade e prestígio se tornassem sinónimos do seu reinado, a ponto de Córdova rivalizar durante o século X com as grandes metrópoles Constantinopla e Bagdad  em matéria de poder, esplendor cultural, e até índices demográficos. Recentes descobertas arqueológicas aliadas às fontes da época, permitem estabelecer a população de Córdova num surpreendente número situado entre 150.000 e 1.000.000 de habitantes, fazendo de Córdova a cidade mais populosa da Europa.
Todo esse prestígio permitiu a Abd-al-Rahman romper com as tradições e reclamar para si o título de califa aos Fatímidas do norte de África e aos Abássidas do médio oriente, que por seu turno não abdicaram de reivindicar os seus direitos. Passaram assim a existir em simultâneo 3 califas, um xiita, os outros dois sunitas.
Os grandes méritos do longo governo de Abd-al-Rahman III prendem-se com as sábias decisões políticas tomadas e a conjugação favorável de factores externos.  Para começar, o emir/califa conseguiu unificar o Al-andaluz, mais uma vez vitimado pelas endémicas rivalidades inerentes à coabitação dos diferentes grupos étnicos e religiosos que o povoavam, todos rivais entre si. Depois, Abd-al-Rahman teve consciência da importância de dominar pacificamente as populações não muçulmanas da península (a maioria da população), e estas por seu lado, ansiavam por um líder forte que as protegesse das garras tirânicas da aristocracia árabe que os governava localmente.  Assim, o califa omíada foi um líder muito tolerante e generoso para judeus e cristãos aos quais concedeu grandes privilégios.
O convívio com os reinos cristãos do norte da fronteira, apesar do desastre de Simancas às mãos de Ramiro II de Leão foi relativamente pacífico, o que fez deste longo reinado de quase 50 anos um oásis no meio da constante turbulência interna e externa em que vivia o Al-andaluz.

Esta estabilidade fez disparar a economia do califado, tendo sido cunhadas nesta época grande quantidade de moedas de ouro e prata e construídas grande número de obras públicas como a escola de medicina de Córdova, uma vasta rede de escolas, bibliotecas, a universidade ou a cidade palatina de Medina al- Zahara, verdadeira maravilha arquitectónica da antiguidade, aquilo a que hoje se poderia chamar um condomínio de luxo que tinha por objectivo servir de residência ao califa e albergar toda a sua corte, governo e séquito de oficiais administrativos. Com alguma audácia, podemos vislumbrar um Versalhes do século X versão islâmica.







A civilização do al-andaluz

Muitas foram as mudanças que a ocupação muçulmana trouxe à península. Começando pela própria topografia urbana, verifica-se uma mudança de paradigma entre o modelo romano/gótico e o modelo islâmico. O centro das cidades passou a ser deslocado de acordo com este último modelo e a ser composto pela mesquita e pelo mercado (ou suq) considerados espaços públicos e por isso mesmo dotados de ruas largas e praças onde os comerciantes e os artesãos trabalhavam e exibiam os seus produtos aos clientes. Os bairros e as zonas residenciais, considerados espaço privado por contraponto, caracterizavam-se por possuír ruas estreitas, labirinticas e sinuosas, delimitadas por muros e com portões que se fechavam de noite.  Hoje em dia, em muitos centros históricos de muitas vilas e cidades do antigo al-andaluz se pode constatar essa essência e as almedinas berberes marroquinas ainda apresentam uma concepção de acordo com este modelo.
Para lá das muralhas da urbe estendiam-se os subúrbios (ou arrabaldes) onde normalmente eram confinadas as minorias não muçulmanas ou etnicamente inferiores. Vem daqui a criação das judiarias, dos bairros cristãos, dos bairros muwalladun (cristãos recém-convertidos ao islão) e dos bairros berberes.
Califado Al-andaluz - principais cidades
População (aprox.)
Córdova
+ de 100.000
Sevilha
52.000
Toledo
37.000
Almeria
27.000
Saragoça
17.000
Valência
15.000

A existência de cidades prósperas e de mercados florescentes assentava na existência de uma agricultura desenvolvida que garantia ao al-andaluz uma autonomia de abastecimento suficientemente forte para que houvesse grande escoamento de produtos para esses mesmos mercados.
Foi o sector agrícola um dos que a civilização islâmica mais veio revolucionar na península ibérica. Passámos de uma base vinícola, olivícola e cerealífera aliada à criação de gado nas terras pouco férteis, para um amplo desenvolvimento que veio juntar a estas, novas culturas. O sucesso? As técnicas hidráulicas herdadas e melhoradas da antiguidade (noras, moinhos de água, poços e aquedutos) e um complexo e eficaz sistema de irrigação que permitiu distribuir água nos terrenos de forma igualitária mesmo em tempos de seca. Expandiram-se assim as antigas culturas e permitiu-se a introdução de novas culturas como os citrinos, as romãzeiras, as figueiras, os damasqueiros, as alfarrobeiras, os frutos secos, as hortaliças, a cenoura, a beringela, os espargos, a cana-de-açúcar, o arroz entre outras.
A civilização da Hispânia islâmica manteve-se assim urbana na sua essência, mas com um conceito de cidade diferente, que incluía os subúrbios rurais.
 Córdova era o modelo a seguir por excelência.
O interesse pela ciência disseminou pelo Al-andaluz no tempo do califado motivado pela estabilidade política, aumento do número de conversões, proliferação da língua árabe e crescimento do número de letrados andaluzes. Nasce assim um pensamento original sustentado no estudo de obras de astronomia, matemática, farmacologia, botânica entre outras disciplinas científicas que beneficiaram amplamente da política de mecenato dos califas e depois dos emires das taifas. No século X Abderramão III encorajou o estudo da botânica enquanto o seu sucessor, Al-Hakam II (961-976) se interessou mais especialmente pela astronomia. A este califa se deve a glória de ter reunido uma biblioteca gigantesca e sofisticadíssima com dezenas de milhares de volumes. De fortes inclinações homossexuais, dele se diz que mantinha um harém de rapazes no seu palácio, tendo-lhe por isso sido difícil gerar um herdeiro. A Al-Hakam II se deve também a última grande ampliação da mesquita de Córdova e a construção da fortaleza de Gormaz. A sua morte marca o início do declínio do califado, que se acentua com a sucessão do seu filho Hisham II, à época uma criança de 11 anos, que se viria a revelar um fraco califa, dominado pelo poderoso ministro Al-mansur (938-1002) que era quem efectivamente exercia o poder no seu lugar.
Al-mansur, político hábil que subiu a pulso na carreira, ocupando cargos administrativos de maior ou menor relevância desde os tempos de Abd-al-Rahman III, revelou-se também um fervoroso jihadista, constituindo um terror para os reinos cristãos peninsulares, cujas incursões e saques não pouparam nada nem ninguém, nem sequer o santuário sagrado de Santiago de Compostela, saqueado violentamente em 997, o que contribuiu ainda mais para alimentar o ódio entre cristãos e muçulmanos.


A fitna

Em 1009, um bisneto de Abd-al-Rahman III, Muhammad II organiza um golpe de estado onde é assassinado o filho e herdeiro de Al-mansur, Abd-al-Rahman Sanchuelo e onde é deposto o califa Hisham II. Começa assim a fitna, a guerra civil do Al-andaluz. Uma intensa luta pelo poder que gerou um período de instabilidade política que iria conduzir ao fim do califado em 1031.
A força do califado omíada assentava na união das várias tribos árabes e berberes que o compunham que faziam deste estado um estado poderoso e temido pelos vizinhos cristãos do norte. O colapso do império e consequente instabilidade, levou à divisão do estado em pequenos reinos independentes, os reinos de taifas. Estes reinos por seu lado, enquanto estados independentes, também rivalizavam entre si, de modo que se assistiu a uma divisão de poderes cada vez maior e a um gradual enfraquecimento do poderio militar dos muçulmanos peninsulares. Esta situação foi a oportunidade pela qual os reinos cristãos da península tanto esperavam e assim, durante o século XI conseguiram grandes conquistas territoriais à custa do al-andaluz.
A queda do califado omíada iniciou deste modo um lento e continuado declínio de poder do mundo islâmico na península que nem o ressuscitar almorávida e almóada dos séculos seguintes conseguiu inverter.