segunda-feira, 3 de outubro de 2016

A dinastia Vimaranes



Panorama político


Figura 1: A Europa em finais do século IX

O ano é 868 d.c., alta idade média. A Europa obedece a uma configuração política bastante peculiar. Não existem França, Inglaterra, Alemanha ou Itália. Os territórios que viriam a corresponder ao que hoje conhecemos como França, Itália e Alemanha faziam parte do domínio dos carolíngios, herdeiros do grande império de Carlos Magno e encontravam-se tripartidos entre os netos do imperador. A Inglaterra está desunida e dividida em sete reinos rivais entre si (é o chamado período da heptarquia). Vindos da Escandinávia, os vikings encontram-se em plena expansão na europa continental, devastando, pilhando (e mais tarde colonizando) desde as orlas costeiras do velho continente até ao seu interior navegando para montante no curso dos grandes rios navegáveis. Os muçulmanos omíadas dominam a quase totalidade da península Ibérica excepto a sua franja setentrional, na posse dos cristãos. O império romano do oriente ainda é uma grande potência, então conhecida como Império Bizantino.
É nessa Europa originalmente distribuída entre pagãos, cristãos, judeus e muçulmanos que sobrevive um pequeno reino no norte da península Ibérica que, considerando-se a si próprio legítimo herdeiro do defunto reino visigótico, vai lutar ao longo dos séculos seguintes pela sua própria sobrevivência e libertação contra o invasor muçulmano até se converter de dominado em dominador: o reino das astúrias.

Não é o momento de entrar em detalhes sobre a lendária formação deste reino, mas prometo fazê-lo num próximo artigo. Para já, direi apenas que terá sido formado por Pelágio, no ano de 722, na sequência da vitória na batalha de Covadonga, a 1ª grande vitória que os cristãos almejaram sobre os “mouros” e o ponto de partida da “reconquista”.
Um descendente de Pelágio, o rei  Afonso III, governava o território asturiano no ano de 868. E é este rei que, após uma campanha vitoriosa contra os muçulmanos no noroeste da península, entrega a Vímara Peres, nobre de origem galega, o governo da recém-conquistada “terra portucalense” de quem o dito nobre se tornaria primeiro senhor (conde) mas na dependência do monarca asturiano (vassalo).


O 1º condado portucalense (868-1071)

Vímara Peres não governou por muito tempo. Da presúria do Porto em 868 até à sua morte em 873 distam apenas 5 anos. Mas foi tempo suficiente para lançar as bases sobre o desenvolvimento do território. Consciente da falta de colonos nas terras recém-conquistadas, o conde incentivou o seu povoamento, trouxe famílias de colonos da Galiza e fundou nos arredores de Braga um pequeno burgo fortificado a que deu o nome Vimaranis (derivado do seu próprio nome). A evolução fonética acabou por converter Vimaranis em Guimarães. Mas os habitantes da cidade onde nasceu Portugal ainda hoje são conhecidos por “vimaranenses”.

 Figura 2Estátua equestre de Vímara Peres no Porto
A Vímarana Peres sucedeu nos destinos do condado o seu filho Lucídio Vimaranes que, no seu longo governo (873-922) procurou continuar a política desenvolvida pelo seu pai de povoamento do território, ao mesmo tempo que procurou consolidar as estruturas governativas existentes e auxiliar os reis cristãos no permanente conflito com os muçulmanos ao sul.
O belicismo entre o reino das Astúrias (nesta época já reino de Leão) e o Emirado Omíada, era constante, com vitórias e derrotas a penderem para ambos os lados. Era a época da reconquista, num período histórico em que ainda não existiam as ordens militares, preciosos auxiliares dos reis cristãos a partir do século XII. E é no contexto de uma vitória decisiva para os ástures que se forma um novo condado na terra portucalense, numa faixa de território compreendida entre os rios Douro e Mondego, que albergava as terras de Viseu, Lamego e Feira e com capital em Coimbra. Formava-se assim o condado de Coimbra, do qual o primeiro conde seria Hermenegildo Guterres a partir de 878.
Os dois condados, o Portucalense e o de Coimbra, coexistiram durante mais de 100 anos. Mas sendo o condado de Coimbra a fronteira sul do território cristão, e portanto a sua guarda avançada, ficou sujeito à pressão constante dos mouros. Essa pressão intensificou-se em finais do séc. X e a queda revelou-se inevitável perante a feroz incursão do temível general muçulmano Almansor em 987. Era a vez do califado de Córdova tomar a dianteira. Mas não seria por muito tempo. Coimbra seria definitivamente tomada pelas forças cristãs em 1064, data em que Fernando Magno tomou a cidade.
Mas voltemos atrás no tempo. Com a morte de Lucídio Vímaranes, o governo do condado foi atribuído não a seu filho Alvito Lucides como seria de esperar, mas a uma linhagem nobre descendente do conde de Tui Afonso Betotes. A explicação para este facto deve-se talvez pelo rei de Leão Ramiro II ser aparentado com esta casa e por isso a ter favorecido.


Figura 3
: Provável árvore genealógica dos condes de Portucale

O sistema feudal da nobreza Ibérica obedecia a laços complexos de vassalagem que assentavam numa hierarquia estratificada em que o senhor mais importante se encontrava no topo, protegia e mandava nos senhores de grau inferior que por sua vez lhe deviam obediência e fidelidade. Assim, do nobre de estatuto mais elevado para o menos importante, temos como explicativa a seguinte sequência:



1-Imperador
2-Rei
3-Duque
4-Conde
5-Senhor


 

Este esquema significa que o imperador é o senhor dos senhores e pode ter inclusivamente reis comos súbditos. Por seu turno, o rei é o senhor de todos os outros e portanto duques, condes e senhores são seus súbditos. Já os duques são senhores dos condes e dos outros nobres, e assim sucessivamente até chegarmos aos escalões mais baixos da nobreza.
A ligação entre as famílias de nobres por outro lado, era tudo menos inocente. Não podemos esquecer que o grande objectivo destas uniões era o aumento do poder e do prestígio da família, daí que na grande maioria dos casos a conveniência se sobrepusesse ao amor. As decisões matrimoniais eram políticas e não afectivas. Os senhores feudais tentavam sempre casar os herdeiros directos do seu património com um partido que lhes pudesse acrescentar mais património e/ou prestígio. Daí resulta por um lado que as linhagens nobres se iam tornando num clube cada vez mais restrito conforme se escalava a pirâmide do poder,  por outro que a mobilidade social se tornava quase impossível de efectuar pois a nobreza era um título de nascimento e hereditário, logo, a um membro do povo não era permitido ascender a essa condição, salvo casos pontuais em que os reis ou outros grandes senhores consentissem na atribuição de tal estatuto, quer revogando um título já existente ao seu anterior detentor, quer criando um título novo.


Hermenegildo Gonçalves, filho de Gonçalo Betotes, seria então o senhor que se seguiria no governo do condado, mas foi a sua esposa, Mumadona Dias que ficou para a história. A condessa assumiu o governo do condado após ter enviuvado e mostrou ser uma governante muito competente. Foi ela a grande impulsionadora do desenvolvimento do burgo vimaranense. À sua iniciativa se deve a construção do mosteiro de São Mamede e do emblemático castelo de Guimarães, planeado para proteger o mosteiro e conter as constantes incursões normandas.

Figura 4Estátua da condessa Mumadona Dias, Guimarães

O filho mais velho do casal Hermenegildo/Mumadona, Gonçalo Mendes, seria o próximo conde de Portucale. Governando numa época conturbada em que teve de lidar com as incursões normandas, a pressão dos muçulmanos ao sul e a crise sucessória no reino de Leão, acabou por morrer em 997, combatendo a invasão de Almançor a Santiago de Compostela.
O filho de Gonçalo Mendes, Mendo Gonçalves, sucessor na liderança do condado, destacou-se pela alta posição que alcançou na corte de Leão. De facto, o conde portucalense terá sido um dos principais conselheiros de Bermudo II. Tornou-se mesmo preceptor do seu filho e herdeiro, o infante Afonso, futuro Afonso V de Leão. E terá inclusive sido um dos regentes durante a menoridade do jovem monarca, com quem casou a sua filha Elvira Mendes. Esta situação atesta bem a proeminência que o conde alcançou na corte leonesa. Não se sabe ao certo o seu fim, mas os historiadores apontam duas hipóteses: assassinato por via de intriga de nobres rivais ou falecimento em combate contra uma incursão viking na Galiza.
A Mendo Gonçalves sucedeu nos destinos do condado a sua outra filha Ilduara Mendes. Esta sucessão revelou-se extremamente importante para a história do condado portucalense porque se deu aqui a união das suas duas famílias nobres mais importantes, a dos Betotes e a dos Vimaranes. A condessa Ilduara escolheu como marido o nobre Nuno Alvites, nada mais nada menos que o herdeiro da casa de Vímara Peres. Uniam-se assim numa só as duas casas mais importantes de Portucale. Não admiraria portanto que, apesar dos laços de dependência para com os reis de Leão, os sucessores do casal se vissem a si próprios com aspirações a algo mais do que meramente uma vassalagem perpétua…


Mas essa ambição ousada iria custar (momentaneamente) o fim do sonho pela independência.
Em 1037 sobe ao trono de Leão o rei Fernando Magno que já era igualmente rei de Castela. Tinha assim um vasto território sob seu domínio. Mas, sabedor das circunstâncias em que conquistou o governo do reino leonês, (casando com a legítima herdeira do reino, a rainha Sancha de Leão e depois de ter morto o rei vigente, Bermudo III), Fernando, receoso de conspirações por parte da alta nobreza, indicou para a tenência e administração dos territórios, homens da baixa nobreza da sua confiança. Foi uma política hábil pois o rei acabou por ter olhos e ouvidos espalhados por toda a parte. Mas quem não gostou da brincadeira foram os grandes senhores do reino de Leão. O conde portucalense da época era Mendo Nunes, filho e sucessor do casal Ilduara Mendes/Nuno Alvites. Mendo, como os outros senhores, não terá gostado de ver diminuir gradualmente o poder no seu próprio condado para forasteiros. Gerou-se aqui um primeiro momento de fricção entre o rei e o conde, que se acentuou com a conquista de Coimbra em 1064 e a atribuição do governo do território ao moçárabe Sisnando Davides.
Mas no final do ano de 1065, antes de morrer, Fernando Magno divide o reino pelos seus três filhos, Afonso, Sancho e Garcia. A Garcia calhou a parte oeste do reino, ficando assim este com o reino da Galiza, do qual o condado Portucalense fazia parte integrante. O novo conde, Nuno Mendes, desejoso que estava de se separar da tutela do rei galego e criar um estado portucalense autónomo, vê na divisão de territórios e consequente enfraquecimento do poder central, uma oportunidade que não podia desperdiçar. Por esse motivo, convocou os seus barões e desafiou abertamente o monarca. Mas saiu derrotado e morto na batalha de Pedroso em 1071… Morria assim o último conde da linhagem de Vímara Peres, sem deixar herdeiro varão e, devido à insubordinação, os seus bens foram confiscados pela coroa da Galiza. Terminava aqui a primeira versão do condado portucalense.
O rei Garcia não teve melhor destino e no mesmo ano acabou por perder o reino para os irmãos que conspiraram para lhe roubar o reino. Garcia morreria no cativeiro no castelo de Vermoim em 1090.
As 3 coroas voltaram a unificar-se na pessoa de Afonso VI de Leão e Castela, o rei que herdou os 3 reinos. Seria este rei que iria restaurar o condado portucalense em 1096 atribuindo o seu governo a Henrique da Borgonha, casado com a sua filha D. Teresa. Isso faz de Afonso VI avô do nosso D. Afonso Henriques, o homem que conseguiu tornar real o sonho dos condes de Portucale e alcançar a tão ambicionada independência.


Concluindo, apesar dos estreitos laços de vassalagem que ligavam os condes portucalenses aos seus soberanos reis das Astúrias e mais tarde de Leão e Galiza, o sonho de autonomia que os condes de Portucale tinham nunca esmoreceu. Mas as contínuas investidas dos muçulmanos na fronteira sul e a dependência pela protecção do soberano, impossibilitavam golpes separatistas.    
O ano 868 não possui destaque nos manuais escolares e por isso mesmo passa despercebido para a maioria dos portugueses. Mas nasceu aqui, e curiosamente também em Guimarães, a 1ª versão do condado portucalense e uma dinastia condal que, entre 868 e 1071 desenvolveu uma identidade própria sustentada por um crescente desejo de autonomia que acabou por resultar num país, volvidos menos de três séculos.

Origens do patronímico português

Muitos dos apelidos portugueses que hoje nos são mais familiares tiveram igualmente origem nesta época medieval. Como o leitor deve ter reparado, a Vímara Peres sucedeu o seu filho Lucídio Vimaranes. O acrescento do sufixo “es” ao primeiro nome indica a proveniência do sujeito. Assim Vimaranes não significa mais do que “filho de Vímara”.
 O mesmo se passou com outros nomes. Por exemplo, o conde Nuno Mendes era filho de Mendo Nunes. E Mendo Nunes por sua vez era filho de Nuno Alvites. Com o passar dos séculos os apelidos, em vez de se alterarem de geração para geração de acordo com a lógica “filho de”, conservaram-se e tornaram-se hereditários. Assim, se séculos mais tarde o mesmo Nuno Mendes tivesse um filho e o baptizasse de Henrique, este não se chamaria Henrique Nunes, mas sim Henrique Mendes.
Na vizinha Espanha, a lógica era a mesma, mas o sufixo era “ez” em vez de “es”. Assim e de acordo com os exemplos que enumerámos, Nunes seria Nunez, Mendes seria Mendez e assim sucessivamente.
A título de curiosidade deixo uma tabela com alguns dos apelidos ibéricos mais conhecidos e a sua evolução.


Nome original
patronímico castelhano
patronímico galaico-português
Álvaro
Álvarez
Álvares-Alves
António
Antúnez
Antunes
Benito/Bento-Bieito
Benítez
Bentes/Bieites
Bermudo/Vermudo
Bermúdez/Vermúdez
Bermudes
Diogo
Díaz, Díez, Diéguez
Dias, Diegues
Domingo/Domingos
Domínguez
Domingues
Egaz/Egas
Viegaz
Viegas
Enrique/Henrique
Enríquez
Henriques
Esteban/Estêvão
Estebanez
Esteves
Fernão/Fernando
Fernández/Hernández
Fernandes
García/Garcia
Garces
Garcês
Geraldo
Geráldez
Geraldes
Gomes
Gómez
Gomes
Gonzalo/Gonçalo
González
Gonçalves
Gutier/Gutierre/Guterre
Gutiérrez
Guterres
Juán/João
(através do latimIoannes)
Yáñez
Eanes/Anes
Lope/Lopo
López
Lopes
Marcos
Márquez
Marques
Martín/Martim-Martinho
Martínez
Martins
Menendo/Mendo/Mem/
Menéndez/Méndez
Mendes
Muño/Monio
Muñoz
Moniz
Nuño/Nuno
Núñez
Nunes
Ordoño/Ordonho
Ordóñez
Ordonhes
Pelayo/Paio
Peláez/Páez
Paes/Pais
Pero/Pedro
Pérez
Peres/Pires
Ramiro
Ramírez
Ramires
Rodrigo
Rodríguez
Rodrigues
Ruy/Rui-Roi
Ruíz
Ruis/Reis
Sancho
Sánchez
Sanches
Suero/Soeiro
Suárez
Soares
Tello/Telo
Téllez
Teles
Velasco/Vasco
Velázquez
Vasques/Vaz
Vímara
Vimaránez
Vimaranes/Guimarães
Ximeno/Ximena
Giménez/Jiménez
Ximenes





quarta-feira, 30 de março de 2016

O fim da multiculturalidade



D. Manuel I, o venturoso/o afortunado, rei que é merecidamente associado à fase de ouro dos descobrimentos portugueses, teve na política religiosa do reino o infortúnio de tomar uma decisão que teria como consequência irremediável o atraso evolutivo de Portugal em relação aos outros países europeus: Decretar a expulsão ou conversão forçada dos judeus do reino, parte significativa e empreendedora da população.

Os reis medievais portugueses, regra geral, reconheceram a importância da comunidade judaica e por esse motivo a protegeram, respeitando a sua liberdade de culto. Convém ressalvar no entanto que, sendo Portugal um país cristão, a discriminação estivesse bem patente e essa liberdade relativa fosse comprada a troco de pesados impostos.
Ainda assim, de D. Afonso Henriques a D. João II os judeus dinamizaram a sociedade urbana portuguesa tornando-se comerciantes, matemáticos, cartógrafos, artesãos, alfaiates, médicos, banqueiros, filósofos, astrónomos e botânicos. Era grande o número de judiarias em Portugal e todas as localidades maiores tinham a sua.
Os judeus portugueses, de livre vontade reconheciam os Reis de Portugal como seus legítimos soberanos e tinham orgulho na sua nacionalidade.  Desempenharam um papel fundamental durante a expansão portuguesa do século XV e constituíam uma franja essencial da intelectualidade nacional, formando uma alternativa ao quase absoluto monopólio do clero cristão nas matérias do conhecimento.
Graças à protecção régia, os judeus tornaram-se importantes conselheiros de estado dos nossos monarcas. A título de exemplo note-se que, por exemplo, D. Afonso Henriques escolheu para ministro das finanças do jovem reino de Portugal um judeu de nome Yahia Ben Yahia que o próprio nomeou como grão rabino da comunidade judaica. Já D. Afonso V terá tido em Isaac Abravanel, além de seu tesoureiro, um dos seus principais conselheiros.

O que se passou então para que os judeus tivessem de abandonar o país? Diz a sabedoria popular que “de Espanha, nem bom vento nem bom casamento”. E aqui se encontra a resposta.  Em 1492, Fernando de Aragão e Isabel de Castela, os reis católicos, influenciados pelo fanático inquisidor-mor dos seus reinos Tomás de Torquemada (confessor da rainha), promulgam o decreto de Alhambra que determina a expulsão de judeus, muçulmanos e hereges do seu território numa tentativa de homogeneizar um reino tão diverso religiosa e culturalmente.
Os expulsos, judeus na sua grande maioria, voltaram-se para o destino de refúgio mais lógico que era Portugal, onde sabiam que os judeus portugueses haviam gozado da enorme liberdade concedida por D. Afonso V.
Mas em 1492 D. Afonso V já tinha morrido e os tempos tinham mudado. O seu sucessor, D. João II, homem dotado de uma inteligência e ânsia de poder invulgares, era muito diferente do pai no que tocava à concessão de privilégios. Contudo, talvez influenciado por judeus importantes da corte, talvez querendo irritar a sua querida inimiga Isabel a católica, ou por ambos os motivos, o príncipe-perfeito prometeu dar asilo aos refugiados. Mas este nosso rei não perdia uma oportunidade para tirar vantagem, mesmo que fosse em função da desgraça alheia. Sabedor da riqueza que os judeus dispunham, e se não dispunham não entravam no reino, D. João II recebe-os a troco de enormes quantias de dinheiro, criando uma espécie de sistema de vistos gold para judeus. Ainda assim estima-se que por essa altura tivessem entrado em Portugal cerca de 60.000 pessoas, que em muito ajudaram a encher os cofres do reino, sedento que estava de financiamento para a jornada indiana que se vislumbrava no horizonte.

Em 1495 morre D. João II e sucede-lhe no comando de Portugal D. Manuel I (1495-1521). Dois anos após a sua subida ao trono, o venturoso recebe a notícia da morte do infante D. João, único filho varão dos reis católicos, e apercebe-se que o destino lhe havia concedido uma oportunidade de ouro de tentar, de forma pacífica, a união das coroas peninsulares sob domínio de um rei português.  Para concretizar esse plano ambicioso, o nosso monarca teria que contrair matrimónio com a filha mais velha dos reis católicos, também chamada Isabel, a nova herdeira das coroas de Castela e Aragão. Mais devido à riqueza do que propriamente à beleza, esta princesa tornou-se um alvo apetecível por toda a Europa. Mas foram os esforços diplomáticos do rei português que surtiram efeito e a sua proposta de casamento foi aceite. No entanto, uma das cláusulas do contrato de casamento dizia respeito à situação dos judeus de Portugal. Para haver casamento, teriam estes de ser expulsos do reino. Preocupado com a possível saída de tanta gente e de tanto pessoal qualificado, D. Manuel pensa numa solução à D. Dinis (que transformou os templários na ordem de Cristo) e ordena o baptismo forçado dos judeus e a proibição de saída destes do país, excepto com autorizações especiais por motivos de trabalho/negócios, mas sempre sem as famílias. A partir desta altura o judaísmo é abolido e os velhos judeus passam a ser conhecidos por “cristãos novos”. Contudo, na sua grande maioria, os cristãos novos eram cristãos por fora, mas continuavam a ser judeus por dentro e a praticar o culto às escondidas…

Podia-se agora consumar o casamento! Mas quis o destino (ou o divino) que o plano de D. Manuel corresse mal. O casamento com D. Isabel gerou um menino de facto, baptizado D. Miguel da Paz, herdeiro jurado de Portugal, Castela e Aragão. Mas a rainha morreu no parto e o menino morreu aos 21 meses de idade (1500) arruinando o plano manuelino de unificação ibérica. O rei voltaria a casar com outra princesa espanhola (D. Maria), mas esta já não era a herdeira directa dos reis católicos. Entretanto, muitos judeus tinham já abandonado a península Ibérica e os cristãos novos que cá tinham ficado, fosse pela inveja que a sua qualidade de vida suscitava ou pela necessidade que a populaça tinha de arranjar bodes expiatórios para as agruras das suas vidas miseráveis, eram constantemente perseguidos e descriminados. A agressividade popular levaria ao massacre de Lisboa de 1506 (o Pogrom de Lisboa) em que cerca de 3000 cristãos-novos foram assassinados. Foi a gota de água. Os cristãos-novos optaram por abandonar clandestinamente o país.
Para um reino tão despido de gente (o primeiro censo geral, do tempo de D. João III contabilizava a população portuguesa em menos de 1,5 milhões de pessoas) a saída de mais pessoas iria acentuar as crises demográfica e financeira que espreitavam.

D. João III precisamente, completa o quadro antissemita que o pai havia começado. A reforma protestante alarmou uma igreja católica corrompida que foi obrigada a retratar-se dos constantes abusos que há séculos vinha a cometer. A resposta veio em forma de uma repressão enorme que a historiografia designou por contra-reforma. O fervor religioso de D. João III e de D. Catarina da Áustria fizeram o resto e a inquisição foi instituída em Portugal em 1536.
Os abomináveis fogos pré-nazis da inquisição portuguesa haveriam de levar o (cripto)judaísmo português à beira da extinção. Da diáspora judaica Ibérica haveriam de beneficiar, não por acaso, nações tão díspares como a Holanda ou o Império Otomano, estados mais tolerantes e principais destinos de exílio dos judeus hispânicos.

 Por possuírem menos talento inovador e espírito empreendedor e incapazes de manter os enormes impérios que tinham conquistado, os reinos Ibéricos seguiriam ao longo  dos séculos seguintes uma fase de lenta mas constante decadência que nem as riquezas ultramarinas conseguiam disfarçar. Ainda assim, a Lisboa que na 2ª metade do século XV havia sido a capital científica do mundo, na 1ª metade do século XVI converteu-se na capital comercial. Em Portugal surgem mentes brilhantes que bebiam do seio do humanismo renascentista de então. É a época de Gil Vicente, de Damião de Góis, de Francisco de Holanda, de Garcia de Resende, de Camões e outros. E surgem igualmente mentes brilhantes de matriz judaico/cristã-nova como foram o genial matemático Pedro Nunes (que por ser protegido de D. João III escapou à fogueira inquisitorial) e o não menos brilhante Garcia de Orta. Contudo, esta época corresponderia ao zénite que antecede a queda abrupta. O botânico Garcia de Orta por exemplo, seria condenado postumamente pelo Santo Ofício que cometeria a atrocidade de realizar um auto de fé ao morto e queimar as suas ossadas na fogueira por acusações de judaísmo… Depois de descoberto o caminho marítimo para a Índia, estava agora aberto o caminho para o obscurantismo, a mesquinhez e a intolerância.

Não deixa de ser curioso verificar que, apesar do atraso evolutivo, a sociedade medieval portuguesa era mais tolerante e multicultural que a da idade moderna. A este respeito diz-nos o prof. Borges Coelho na sua obra “Portugal Medievo” que, “em Portugal pululavam milhares e milhares de cristãos, velhos e novíssimos, e mouros e judeus; e continuavam abertas ao culto sinagogas e mesquitas”.
As decisões de D. Manuel e D. João III, embora fruto de motivações diferentes inseridas em estratégias planeadas, em conjunto quase acabaram com a multiculturalidade e a liberdade de pensamento em Portugal. O pensamento e o espírito crítico que, por força dos ideais renascentistas se disseminam um pouco por toda a Europa, por força do tribunal inquisitorial regridem em Portugal. O país entraria num colete-de-forças cerebral de onde só se libertaria a espaços nos séculos seguintes e definitivamente em 1821, por alturas do liberalismo, onde, por fim, se apagou a fogueira do Santo Ofício. Mas o atraso era já irrecuperável…