terça-feira, 4 de agosto de 2020

Sebastianismo - A história de um mito


Na história de muitas nações europeias existe o mito do messias local, o herói nacional que irá regressar à vida e salvar o seu país na sua fase mais tenebrosa, devolvendo-lhe a glória e o esplendor de outros tempos. Esse messianismo adaptado às condições culturais de cada país, é personificado em França nas figuras de Joana D'Arc e Napoleão. É personificado na Alemanha com a figura do imperador Frederico Barba Ruiva. E em Portugal é representado na pessoa de D. Sebastião sendo por isso chamado de sebastianismo.
Os messias históricos portugueses podiam ter sido escolhidos entre nomes como D. Afonso Henriques, Nuno Álvares Pereira ou D. João II por exemplo, figuras que de facto trouxeram prestígio a Portugal, da mesma forma que os nomes franceses e alemão acrescentaram algo aos seus respectivos países. Mas não. O escolhido dos portugueses foi o seu 16º rei, soberano que lhe trouxe a ruína e a perda da independência, que se tornou desejado depois da morte, quando já o tinha sido antes de nascer. Porquê este estranho desejo de séculos por um governante controverso e incompetente?
Vou de seguida tentar explicar e desvendar o paradoxo que representa esperar por um salvador da pátria na figura de um dos piores reis da nossa história.



O panorama político da época:



O Século XVI foi uma época marcada por profundos contrastes tanto em Portugal como na Europa.
Em Portugal, e até à morte de D. Manuel I (1495 - 1521) a exploração marítima e o prestígio do reino conheceram o seu auge.
A D. Manuel sucedeu o seu varão sobrevivente mais velho, D. João III (1521 - 1557), que não herdou nem o engenho nem a inteligência política do seu pai e irmãos. Prudente e bem aconselhado no entanto, tendo vivido numa época de catástrofes (terramoto de Lisboa de 1531) e de propagação inicial do protestantismo, soube manter e organizar o imenso império que herdou, com excepção das dispendiosas praças de Safim e Azamor - no norte de África - que abandonou, seguidas das praças de Alcácer Ceguer e Arzila.
Fig. 1 - D. João III, avô e antecessor de D. Sebastião

Data deste reinado a introdução da companhia de Jesus e da inquisição em Portugal. Consequências da contra-reforma católica, estas instituições permitiram ao rei uma centralização mais forte de poderes na sua pessoa, ao serem recorrentemente instrumentalizadas em seu proveito tanto no Portugal peninsular como no ultramarino.
D. João III teve a infelicidade de ver morrer todos os seus dez filhos à sua frente. Por este motivo, a continuidade da dinastia de Avis estava seriamente ameaçada. Quando D. Sebastião nasceu, em 1554 (18 dias depois da morte do seu pai - o infante D. João) o país aguardava com enorme ansiedade. Afinal tratava-se do único descendente (neto neste caso) de D. João III.  Quando se  confirmou o nascimento desse herdeiro masculino que iria dar continuidade à dinastia de Avis, foi um acontecimento celebrado efusivamente por todo o reino. Nascia "o desejado".

Na Europa, ao esplendor renascentista do primeiro quartel de 1500, seguiu-se um clima de grandes tensões motivadas pela divisão religiosa provocada pela eclosão e disseminação do movimento protestante e pela expansão do império otomano. Estas tensões vão-se agudizando à medida que o século avança.


Mapa 1 - Protestantismo em meados do Séc. XVI

No período correspondente à regência por menoridade de D. Sebastião (1554-1568), a Espanha de Filipe II era a incontestada potência europeia, seguida de perto pela  protestante Inglaterra de Isabel I que se encontrava em ascensão. A França, dilacerada por guerras religiosas e longe do fulgor que conhecera durante os reinados de Francisco I e Henrique II (o tal cuja morte Nostradamus terá profetizado...) estava num período conturbado da sua história do qual só recuperaria já próximo do final do século, e cujo expoente foi a noite do massacre de S. Bartolomeu (1572). O império, depois da abdicação de Carlos V e da morte do seu irmão Fernando I em 1564 (dois católicos fervorosos), era governado por um Habsburgo bastante mais tolerante (Maximiliano II) que dizia ser "nem católico nem protestante, mas cristão". Contudo, e apesar das suas boas intenções, a tentativa de conciliação entre as partes não foi concretizada. A manta de retalhos que compunha o império tornava-o cada vez mais difícil de governar de forma eficaz, sendo a religião o pretexto indicado para os príncipes conquistarem cada vez mais autonomia nos seus territórios.
No meio deste cenário, uma outra potência emergia, ameaçando seriamente a dividida Europa cristã, o já mencionado império Turco-Otomano.
Depois de tomarem Constantinopla em 1453 (pondo fim ao velho império bizantino), a expansão dos turcos não cessou. Conquistam territórios nos balcãs e no leste europeu, e em 1526 conquistam quase toda a Hungria, cujo rei (Luis II) é morto em combate. Em 1529 cercam Viena, alarmando toda a cristandade. O falhanço deste cerco porém, constituiu o primeiro grande revés das tropas de Solimão "o magnífico" tidas até então como imbatíveis.
Mapa 2 - O poder turco ao longo dos séculos





Em 1571, o poder turco/otomano estava novamente no auge. Tinham um império que se estendia desde os balcãs à actual Argélia. Eram uma das maiores potências mundiais e ameaçavam seriamente a Europa, nomeadamente os países mediterrânicos. Por esse motivo, os estados católicos do sul - estados pontifícios, república de Veneza e reino de Espanha - unem esforços para travar a sua expansão no mediterrâneo. Trava-se no oriente deste mar a batalha naval de Lepanto que resultou numa grande vitória da Santa Liga Católica. Esta vitória, apesar de importante, não foi decisiva, pois os Turcos apenas refrearam a sua expansão no mediterrâneo mas não deixaram de exercer a sua influência sob outros países, nomeadamente naquele que faltava conquistar no norte de África (Marrocos).
Toda a cristandade estava receosa desta expansão. Pairava no ar um clima de guerra santa.



D. Sebastião - Um retrato biográfico:


Compreender a personalidade de alguém que esteve quase a ser um acidente genético é um desafio complexo e fascinante que vou tentar explicar.

Nasceu no dia do santo que lhe deu o nome (20 de Janeiro de 1554). De D. Sebastião se diz que já em tenra idade era uma criança obstinada. Ainda em vida do avô D. João III, fez na sua presença uma enorme birra e este terá dito "cedo quereis governar".
Ruivo, olhos azuis, muito pálido, o lábio inferior descaído, de estatura média mas com grande força física, amava a caça, domar cavalos e ver justas de cavaleiros. Revelou uma personalidade indolente, caprichosa e arisca, à qual se juntaram graves problemas de saúde que se evidenciaram à medida que foi crescendo.


Fig.2 - D. Sebastião em criança


Devido às tentativas constantes de unificação da península ibérica sob o mesmo monarca e da manutenção da pureza do "sangue real", D. Sebastião foi fruto de relações de grande consanguinidade, quase incestuosas, e ainda por cima com historial de loucura familiar pelo lado materno.
Como o pai morreu antes do seu nascimento e a mãe, uma princesa castelhana, se retirou para Espanha após o seu nascimento, a sua educação teria de ficar a cargo de alguém que o pudesse preparar para o ciclópico ofício régio que o esperava. Este foi um tema de acalorada discussão na corte durante a sua menoridade. Os tutores escolhidos acabaram por ser dois padres jesuítas, os irmãos Martim e Luís Gonçalves da Câmara (que depois o acompanharam na governação), e para seu aio foi escolhido D. Aleixo de Meneses, um  herói de guerra, veterano das campanhas do norte de África e da Índia. Sendo órfão de pai e com uma mãe ausente, sem irmãos e parentes próximos da sua idade, a família com que manteve mais contacto eram pessoas muito mais velhas - a avó D. Catarina e o tio-avô D. Henrique. O ambiente que se respirava na corte era pesado e austero. Terá tido o jovem rei a oportunidade de se ter sentido verdadeiramente uma criança? É pouco credível que o tenha sido a partir do momento que herdou a coroa aos 3 anos de idade.
A personalidade do nosso rei foi assim moldada por figuras que lhe incutiram o zelo religioso e o gosto pela vida militar, em especial a luta contra o infiel que, como já explicámos, continuava bem presente no quotidiano de Portugal e da Europa cristã. D. Sebastião ficou obcecado por esta ideia de guerra, que era a guerra mais difícil de todas, a ofensiva ou de conquista. Para D. Sebastião este era um sonho a concretizar. Este ideal de cruzada estava já ultrapassado, mas compreendia-se devido ao contexto da época e à educação de monge guerreiro a que o rei foi sujeito. 
Tivesse sido o nosso rei educado por outras figuras ilustres da época que lhe tivessem incutido outra maneira de pensar e talvez as coisas tivessem resultado de forma diferente. E havia vários grandes pensadores e humanistas no Portugal de 500. Um desses nomes (o matemático Pedro Nunes) foi professor de D. Sebastião. Não foi suficiente.
O embaixador espanhol em Lisboa, Juan da Silva, descrevia assim a personalidade de D. Sebastião em carta dirigida a Filipe II em 1576: "o seu aspecto é de homem muito são, mais forte que defeituoso. Todavia dizem que tem nas pernas uma frialdade muito grande e assim as cobre muito. Mostra tanto ódio às mulheres que aparta os olhos delas (...) Foi criado pelos da companhia (de Jesus), que lhe afearam tanto o trato com as mulheres, como um pecado de heresia, e bebeu daquela doutrina de maneira que não faz diferença entre a gentileza, que é virtude, do que é ofensa a Deus. (...) É tão grande a adulação que o rodeia, que lhe ousarão dizer que é o homem mais alto de Portugal, ou o maior músico, ou coisa semelhante. Tem engenho agudo e confuso, concebe imaginações subtis, não as pode digerir e assim nascem monstros."


Em Janeiro de 1568, completados 14 anos, esse adolescente imberbe herda um dos maiores impérios mundiais espalhado por 4 continentes.
A adulação e exaltação foram uma constante ao longo da sua vida.
Vejamos este trecho da sua chegada a Évora em 1569 em que foi recebido pelo humanista André de Resende, um dos nomes cimeiros do renascimento em Portugal:
" Venhais em felicíssima hora, nosso Rei, nosso espelho, em que nos revemos; nossa preciosa jóia, de que muito nos gloriamos; esperança do reino, em que para vos servir nascemos, dado a nós por Deus, pedido a Deus por nós, convosco entre a saúde, entre a prosperidade e tudo o que se pode chamar bem".
Outro exemplo de exagerada exaltação é o testemunho do prior de Tavira quando D. Sebastião visitou esta cidade algarvia em 1573: "...E se algum rei se pode chamar rei, por Graça de Deus vossa Alteza o é, porque os reis são gerados e nascidos do ventre das mães, e vossa alteza, além disso foi gerado e nascido do ventre dos merecimentos das muitas lágrimas, suspiros, orações e sacrifícios que os seus povos ofereceram a Deus na hora do seu nascimento."
No meio de tanta idolatria, não admira que o nosso rei tivesse criado uma ilusão de si próprio como alguém de cariz divino, que, dado o seu estatuto, teria por obrigação trazer ao seu país e à cristandade a glória que ele próprio almejava ter. Esse era o seu propósito, essa era a sua missão. Raramente dava ouvidos às (poucas) vozes que o contrariavam, como a da sua avó D. Catarina, (que ameaçou deixar o reino perante as constantes decisões políticas do neto que a contrariavam), e o tio, o cardeal D. Henrique, que inicialmente fez parte do conselho de estado mas acabou por se retirar para  o mosteiro de Alcobaça.
A sua companhia, além dos irmãos Câmara,  eram sobretudo jovens fidalgos aventureiros, como Cristóvão de Távora, que não tendo nenhuma experiência no campo de batalha, tinham muitos sonhos e partilhavam com o rei da vontade de guerrear para conseguir o seu quinhão. 

Além destes miúdos, é justo dizê-lo, outras  ilustres figuras da época incentivaram D. Sebastião a lançar-se nesta louca empreitada. Falo por exemplo dos escritores, como Francisco de Holanda e Luís Vaz de Camões, poeta maior da nossa literatura, que publica os Lusíadas em 1572, dedicando este épico ao nosso rei e que entre outras passagens, assim relata no canto 1:


Fig. 3 - Retrato fictício de Camões a recitar os Lusíadas a D. Sebastião


"E vós, ó bem nascida segurança
Da Lusitana antígua liberdade,
E não menos certíssima esperança
De aumento da pequena Cristandade;
Vós, ó novo temor da Maura lança,
Maravilha fatal da nossa idade,
Dada ao mundo por Deus, que todo o mande,
Para do mundo a Deus dar parte grande;"

Não está comprovado que Camões tenha lido os Lusíadas a D. Sebastião no palácio da vila em Sintra ou noutro lugar qualquer. Essa imagem pertence a um mito histórico, que, de acordo com o Prof. José Hermano Saraiva, "é uma das coisas do seu reinado que podemos ter a certeza que nunca aconteceu."
Fig.4 - D. Sebastião em idade adulta

A obstinação de D. Sebastião era também a sua maior fraqueza. Ter o foco na guerra sem a preparar devidamente e sem deixar o reino assegurado em caso de morte era de uma imprudência juvenil para qualquer aspirante a grande estratega.
Por este motivo, o seu casamento foi um dos assuntos prioritários da regência e do conselho de estado nos primeiros anos do seu reinado. E foi um dos grandes argumentos da facção opositora à guerra em Marrocos. O rei não tinha por este assunto particular interesse. Segundo relatam as fontes da época, teria grande aversão não só ao casamento como também ao sexo feminino.
Esta aversão teria a ver com uma suposta homossexualidade do rei? Ou uma castidade que lhe fora incutida pela educação de monge guerreiro a que foi sujeito? E estaria relacionada também com os  seus recorrentes problemas de saúde que incluíam desmaios, tonturas e secreção uretral desde tenra idade? As 3 hipóteses são válidas e para todas existem indícios fortes...
Existe ainda uma outra hipótese, mais perturbadora, que indica que o rei pode ter sido vítima de pedofilia em criança, abusado por um dos Câmaras, o que explica a doença semelhante à gonorreia de que padecia.

A verdade é que, fosse por motivos de doença, homossexualidade ou jogos de bastidores políticos, a falta de vontade do rei nesta matéria fez com que a questão do casamento fosse sendo sistematicamente adiada até à partida para Marrocos. E isso revelar-se-ia fatal para o destino de Portugal.



Os anos de reinado


Apesar de algumas mudanças administrativas, visíveis ao nível da organização das cidades e comarcas do reino, o foco principal do governo de D. Sebastião foi sempre direccionado para a via militar.
Logo em 1569 uma grande peste assolou Lisboa. O rei refugiou-se em Alcobaça e Coimbra onde mandou abrir os túmulos de D. Afonso II e D. Afonso III, e D. Afonso Henriques e D. Sancho I respectivamente. A comparação com os reis do passado sempre assoberbou a sua personalidade. Não se coibia de fazer perante a fidalguia juízos de valor sobre os seus antepassados e tinha o seu ponto de vista bem fundamentado sobre cada um dos antecessores, o que revelada boas capacidades cognitivas.
Em 1570 estabelece as ordenanças militares em todas as cidades, vilas, concelhos e lugares. Irá o rei pessoalmente inspeccionar essa mobilização geral no périplo pelo Alentejo e Algarve em 1573.
Em 1571, a visita do cardeal Alexandrino, embaixador enviado pela Santa Sé, propõe a D. Sebastião a entrada na santa liga católica, a aliança cristã que tinha feito frente aos turcos em Lepanto. A ideia não agradou a D. Sebastião que, apesar de se ter prestado a auxiliar no envio de uma frota, recusou ajuda em homens, lembrando que Portugal já fazia sozinho um esforço enorme ao combater os infiéis nos mares do Índico. Outro dos pontos desta reunião era concertar um possível casamento com Margarida de Valois, princesa irmã dos reis Francisco II, Henrique III e Carlos IX, para a França se tornar mais católica, dilacerada que estava pelas atrás referidas guerras da religião. No entanto as negociações não avançaram nesse sentido.
Em 1573, o périplo pelo Alentejo e pelo Algarve visou inspeccionar o estado destas regiões em termos militares, como territórios fronteiros que eram com Marrocos e importantes bases de apoio para a expedição que se avizinhava.




A expedição


A batalha de Alcácer Quibir, que também ficou conhecida como a batalha dos 3 reis - por nela terem morrido os 3 principais intervenientes - e que foi o maior desastre militar da nossa história, começou por desenhar-se na primeira viagem de D. Sebastião a Marrocos em 1574. Aí passou o monarca alguns meses entre Ceuta e Tânger onde se terá inteirado da situação das praças e da viabilidade de realizar uma expedição de conquista, algo que não se afigurou viável na época.
Essa oportunidade surgiu em 1576, com a deposição do trono marroquino do xarife Mulei Muhamed pelo sobrinho Mulei Moluco, apoiado pelos Turcos. D. Sebastião vê nesta crise sucessória a oportunidade ideal para passar à acção em Marrocos e ao mesmo tempo tentar rebater a expansão turca. Mulei Muhamed através do capitão da praça de Tânger, D. Duarte de Meneses faz apelo militar a Portugal, depois de ter recebido nega dos espanhóis a quem recorreu inicialmente.
D. Sebastião responde positivamente e, sabendo da força e poder do reino de Espanha, pede auxílio ao tio Filipe II e encontra-se com ele em Guadalupe no final desse ano de 1576. O encontro entre os dois reis teve como temas de conversa a expedição militar que D. Sebastião entendia ser necessária levar a cabo em Marrocos e o ponto estratégico de ataque que seria o porto de Larache, base de piratas e corsários magrebinos que daí se lançavam sobre os navios e as costas portuguesa e espanhola. Filipe II, mais experiente e conhecedor da realidade turca, sabia que Marrocos não era motivo de alarme para objectivos expansionistas otomanos e muito menos de uma possível nova invasão da península. Tentou por isso dissuadir o sobrinho, lembrando-o do esforço militar que o império espanhol fazia um pouco por todo o mundo, com incidência principal, na época, nos países baixos. Presente nas reuniões esteve também o duque de Alba que lembrou (e bem) que os portugueses já não combatiam em campo aberto desde 1476 (na batalha de Toro), e seria ainda pior fazê-lo em território estranho e hostil. Também desaconselhou D. Sebastião a ir pessoalmente a África, mandando em seu lugar um general com comprovada experiência militar. Era a visão prudente contra a visão impulsiva...
No entanto, e perante a insistência de D. Sebastião - que prometeu inclusive casar com uma das filhas do seu tio - Filipe II acabou por autorizar ajuda militar de 5000 homens e 50 galés, mas com a condição de a campanha se realizar durante o ano de 1577 e apenas para a conquista de Larache, o que, como sabemos, não veio a acontecer (a expedição só teve lugar no Verão de 1578). 
Regressando a Lisboa em Janeiro de 1577, D. Sebastião passa a dedicar-se exclusivamente à preparação da empreitada africana. Primeiro era necessário obter fundos. Para tanto, o nosso rei pede ao papa (que lha concede) a bula da cruzada. E assim arranjava-se um casus belli (justificativo de guerra) e podiam-se colectar alguns rendimentos da igreja. Depois lançam-se impostos (como o do monopólio régio sobre o sal), e contraem-se empréstimos. O próximo passo seria recrutar homens. A partir daqui começam os erros graves no planeamento da expedição. Muitos dos recrutas eram camponeses que nunca tinham pegado em armas na vida. Isto deve-se à corrupção que se verificou no processo de recrutamento, pois muitos dos homens válidos pagavam aos coronéis para escapar à guerra, pelo que sobravam os mais pobres e desfavorecidos. O comando supremo do exército, inicialmente pensado para D. Luís de Ataíde, experimentado militar e vice-rei da Índia, acabou por recaír no próprio D. Sebastião perante a recusa do primeiro e a vontade de comandar manifestada pelo segundo.
D. Sebastião considerava-se um paladino da cristandade. Como se fosse um rei cruzado. Para esta aventura levou a espada e o escudo de D. Afonso Henriques, num acto carregado de simbolismo. Antes da partida do exército fizeram-se pomposos desfiles em Lisboa. O clima mais parecia festivo que de guerra.

Erro grave ter um general sem experiência a comandar o destino de uma nação.



A batalha

Fig. 5 - Representação da batalha de Alcácer Quibir


Outro das más decisões relativas a esta campanha foi a época do ano em que se decidiu fazê-la. Julho/Agosto em Marrocos sob calor escaldante? A partir do momento em que já tínhamos as bases permanentes de Ceuta e Tânger, que nos transmitiam as informações necessárias sobre o nosso alvo, fica difícil perceber porque não se realizou a expedição numa altura em que houvesse um clima mais propício ao desempenho da hoste portuguesa.
Chegado o exército português ao Magrebe, parte das tropas aquartelou-se em Tânger e a outra parte em Arzila, que à data já não pertencia aos portugueses mas que estava do lado do Xarife deposto, Mulei Mohamed, nosso aliado. Contra a opinião dos seus conselheiros militares, que preferiam cercar e conquistar Larache, D. Sebastião prefere levar o exército por terra até ao encontro do exército de Mulei Moluco, embrenhando as tropas no calor do sertão marroquino, com toda a carriagem e armamento muito mais pesado que o dos mouros. Isto levou as tropas a uma desnecessária exaustão, o que causou uma grande desvantagem logo à partida.
Depois, ficando os dois exércitos frente a frente, ainda havia a questão da desvantagem numérica. Calcula-se que o exército português teria entre 15.000 a 18.000 homens. O exército marroquino teria seguramente mais de 45.000, numa proporção de 1/3 ou 1/4.
Chegado o momento da verdade, o do confronto, D. Sebastião hesita. Não se sabe se paralisado pela enorme meia lua do exército inimigo que quase rodeava a hoste portuguesa, ou se estaria em oração à espera de uma intervenção divina, demorou a dar a ordem de começo e a batalha começou espontânea e de forma desordenada.
A partir daqui, a única grande certeza é a derrota portuguesa. O fim de D. Sebastião, isto é, se morreu, se escapou, se foi aprisionado, é outro facto histórico que durante muito tempo pertenceu ao domínio da incerteza, o que contribuiu para o crescimento da lenda. A historiografia mais recente e as fontes islâmicas porém, afirmam que a teoria mais plausível é a da morte do rei no campo de batalha. Nenhum dos nobres sobreviventes afirmou ter visto morrer o rei. Esta situação explica-se na medida em que, à luz do código cavaleiresco da época, era desonroso para qualquer cavaleiro afirmar ter visto morrer o seu rei sem antes ter dado a vida por ele. Ainda assim, de acordo com diversos historiadores, e vou citar aqui o professor Borges Coelho, "ao terceiro dia da perdição, mandaram ao campo Duarte de Meneses, alcaide de Tânger, e outros privados do rei, que identificaram o corpo e o levaram para Alcácer Quibir. O Xarife Ahmed, irmão do falecido Mulei Moluco, libertou o cadáver. Levado para Ceuta, todos duvidaram que fosse D. Sebastião".
Assim nasceu o mito.


Reflexões finais


O aventureirismo de um jovem desligado da realidade, um templário fora de época, ou, se quisermos, um D. Quixote entronizado, deitou tudo a perder para as ambições nacionais. Embora uma expedição a Marrocos se compreenda analisando todas as variáveis envolvidas na época, nunca poderia ter sido feita com um planeamento tão deficiente, sendo as ambições tão grandes e os países em confronto tão desproporcionalmente diferentes. E muito menos se podia ter feito uma campanha com tal magnitude empenhando tantos recursos por tão fraco retorno.

Por culpa de tantas más decisões, a dinastia de Avis, que tão brilhantemente havia iniciado com o nosso D. João I de "boa memória" teria com D. Sebastião o seu ocaso e a sua má memória. O epílogo viria mais tarde com o Cardeal-rei D. Henrique, seu tio, que não fez mais que adiar o inevitável e deixar o trono aos espanhóis.


Exposta que foi a história, falta responder à pergunta inicial: Porque desejamos tanto o regresso de D. Sebastião? Vou usar uma expressão pessoana. Porque "falta cumprir-se Portugal".
Com D. Sebastião termina o século de ouro da história portuguesa. Com a morte de D. Sebastião, Portugal inicia um processo de contínua decadência da qual nunca mais recuperou. Nas primeiras décadas após o seu desaparecimento, no tempo dos Filipes, a ânsia pelo regresso do rei prendia-se com a luta contra o opressor castelhano e o desejo de recuperação da independência perdida. Recuperada que foi essa independência em 1640, este desejo inicial evoluiu para o sonho de recuperação das glórias passadas. E esse sonho continuou, alimentado e movido por conceitos tão poderosos, mas ao mesmo tempo tão abstratos como a crença e a fé, que aqui na ocidental praia lusitana se confundem com o nome de saudade.
Hoje, 04 de Agosto de 2020, passam exactamente 442 anos da trágica batalha de Álcacer-Quibir. Então, como agora, atravessamos um período complicado da nossa história.
Todos temos algo de sebastiânico na nossa vida, na medida em que temos sempre a esperança de conseguir reparar mais tarde os erros que não foram resolvidos antes. É também por isso que existe essa identificação geral com este monarca. Continuamos à espera que ele venha reparar os erros que criou. Mas não podemos desejar que os problemas das nossas vidas se resolvam miraculosamente. É preciso uma transcendência da parte de cada um, para que colectivamente possamos dar a volta por cima, voltar a ter uma voz activa no mundo e reconquistar o nosso espaço.

Se assim for, se Deus quiser, e se nós sonharmos, então a obra nasce. E assim se cumprirá Portugal.