Em tempos de pandemia, resolvi vasculhar os arquivos em busca da doença que mais aterrorizou a humanidade durante séculos:
A peste negra ou peste bubónica.
Para começar, devo dizer que, ao contrário da doença que nos atormenta nestes tempos, a peste negra não tem uma origem virológica, mas antes bacteriana. Nem tem uma taxa de mortalidade como o coronavirus. Mas tinha níveis de contágio igualmente impressionantes. O bacilo em questão era originário do centro da Ásia e, transportado nas pulgas dos ratos dos navios mercantes de Veneza e Génova, infectaram as populações humanas, causando a morte de possivelmente mais de 100 milhões de pessoas, só na Europa...
Podemos assim concluír que era uma doença muito mais letal e para a qual as populações não estavam minimamente preparadas.
Outra curiosidade é constatar que a grande peste do século XIV nem sequer foi a primeira que assolou a Europa. A primeira de que há registo, data do século VI d.c. no tempo do imperador Justiniano (sendo por isso baptizada de "praga Justiniana"). E não foi menos devastadora que a segunda... Estima-se que tenha morto cerca de 50 a 100 milhões numa época em que a população europeia não ascendia a 200 milhões. Esta crise retraiu o império bizantino e levou a que nos séculos VII e VIII os árabes conseguissem uma expansão mais rápida na bacia sul do mediterrâneo e na península Ibérica.
Nenhum povo está preparado para combater um inimigo que é invisível como um morcego em noite de lua nova, imprevisível como um enxame de abelhas em fúria e mais mortífero que uma bomba atómica.
Muito menos a Europa de meados do século XIV...
Dos séculos XI a finais do XIII, findo o período de grandes invasões e alicerçado a um rápido crescimento demográfico, a civilização europeia assistiu a um notável desenvolvimento urbano, arquitectónico, comercial e militar. Foi o tempo das catedrais e dos castelos, do românico e do gótico, das cruzadas e da reconquista cristã, das universidades, do crescimento do comércio e da burguesia. Um esplendor medieval que não havia memória no ocidente europeu. Quando as monarquias europeias se preparavam para dar o passo seguinte no seu desenvolvimento, toda uma série de acontecimentos vieram atrasar para os meados de quatrocentos o que poderia ter começado 100 anos antes.
Depois temos outros elementos fundamentais que facilitaram a propagação exponencial da "praga divina". O crescimento das cidades e a concentração humana aí existente, a falta de higiene entre as classes sociais mais pobres (grande maioria da população), inexistência de saneamento básico e, claro, a parca medicina da época.
Com efeito, o conhecimento e os meios da época eram esmagadoramente inferiores aos actuais. Existiam médicos (conhecidos então como físicos) e separados de acordo com a sua especialidade. Também existiam farmácias e farmacêuticos (então denominadas boticas e boticários) e numa hierarquia médica inferior aos físicos estavam os cirurgiões, que se dividiam em operadores e sangradores. Complementar a este grupo estava aquilo a que hoje chamamos de "medicina alternativa", composta pelos curandeiros, barbeiros, bruxos, etc. e que tinha um peso enorme na saúde medieval.
De notar que, numa época de rígida matriz cristã, a medicina e a farmacopeia viviam sob a influência do conhecimento hebraico e árabe, muito mais desenvolvidos que o cristão. Estes eram dos poucos grupos autorizados a possuir livros em árabe e em hebraico. As receitas no entanto eram passadas em latim.
O conceito moderno de hospital não existia na idade média. O mais próximo disso eram as enfermarias dos conventos. Os hospitais que a documentação da época refere, não passam, em regra, de recolhimentos ou hospícios, com uma incipiente assistência médica. Outros estabelecimentos que o conceito medieval generaliza como hospitais são os hospitais termais, os lazaretos ou gafarias, as albergarias, os asilos e os hospitais para meninos (ainda não reconhecidos como orfanatos no sentido clássico do termo). As albergarias eram normalmente pousadas para peregrinos. As gafarias e lazaretos sim, tinham a função de recolher e isolar os enfermos atacados por doenças contagiosas. A sua distribuição esparsa e os poucos profissionais e conhecimentos da época fizeram com que a luta contra o bacilo da peste fosse uma luta muito desigual. Quase como se tentássemos vencer um tanque blindado com recurso a paus e pedras...
A peste propagou-se assim a uma velocidade vertiginosa. Aldeias, vilas e algumas cidades ficaram desertas. Os poucos que sobreviviam ficaram com danos psicológicos e traumas permanentes. Tratava-se de uma verdadeira guerra contra um inimigo invisível.
Não obstante, tomaram-se medidas iguais às de hoje. Recolhimentos, isolamentos. Não é de espantar que quem vivia mais isolado tendencialmente tinha mais hipóteses de sobreviver.
Os sintomas eram terríveis. Febres altas, náuseas, vómitos. Inicialmente começava com o aparecimento de inchaços nos gânglios linfáticos (os bubões). Que alastravam devido à comichão que causavam. Quando passavam para o sangue e os pulmões do doente, era o fim.
Só quando a mortandade atingiu níveis espectaculares o bacilo deixou de se propagar por não haverem potenciais contagiadores suficientes...
Os anos que se seguiram foram terríveis para quase todos, mas ironicamente os que viviam nos campos e que sobreviveram, alimentavam-se mais e melhor, ao contrário dos seus antepassados.
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